As interfaces da Mística- Que é o místico?


As interfaces da Mística- Que é o místico?

Padre Messias Correia

Francisca era grande admiradora de um místico chamado João. Era uma admiração a distância, pois nunca o havia encontrado pessoalmente. Lia alguns dos seus escritos, via algumas entrevistas suas, mas, até então, nenhum contato direto. Admirava-o porque ele acenava para Deus. Sua experiência com o divino era algo profundo, que despertava em Francys (como assim era conhecida), uma força que impulsionava para buscar sempre mais a Deus. Ela sabia que João já havia feito um longo caminho espiritual, no qual ela dava, ainda, os primeiros passos.
Soube, por providência, que aconteceria um retiro numa pequena chácara, em um final de semana. Contudo, não foi divulgado quem iria ser o orientador espiritual e pregador.  Mas, com seu desejo insaciável por Deus foi umas das primeiras a se inscrever.
Para sua surpresa, ao entrar na sala onde seriam desenvolvidos as orações e os momentos forte de meditação e estudo das escrituras, se deparou com aquele homem levemente sentado, era João.  Para não perturbá-lo em sua meditação e preparação para a abertura das atividades, ela se dirigiu ao seu lugar e sentou. Era uma almofada vermelha que acomodava bem o seu corpo; as sandálias haviam permanecido do lado de fora; a bíblia fora acomodada entre as pernas cruzadas. Todo ambiente era orante e silencioso, dava para ouvir em distância o canto dos pássaros e o sussurro do vento que atravessavam, como melodia, o coração de Francys. E assim ficaram.
Pela tarde, como parte da oração, cada um se dirigiu a um ambiente que mais lhe favorecia; alguns foram para beira do riacho, outros para o jardim. Ela, porém, preferiu sentar-se em um pequeno banquinho debaixo de uma amendoeira. Durante uma hora estava ali, quando sentiu uma mão tocar em seu ombro, era João. Sentou-se ao seu lado e perguntou se estava tudo bem. Ela desconcertada, disse que sim. E ali começaram um pequeno diálogo. Francys, então, sorrir e lhe faz uma pergunta: mestre João, o que é um místico? Ele se assusta, como se tivesse surpreso com aquela pergunta, fica em silêncio por alguns instantes e responde: filha, não sei bem como definir, não é tarefa fácil. Permita-me recorrer, em minha limitação, a uma linguagem mais poética, posto que a poesia e a mística são enlaçadas. Sobre o místico posso dizer que experimenta as delícias de Deus, quase sempre sem paladar. A graça aguça os recipientes dos seus sentidos elevando-os a profundidade de Deus. De outro modo, retira-lhe todo vigor e obscurece as faculdades a ponto do não–sentir. O não-sentir Deus é uma das formas mais profundas de estar com Ele, pois excede toda explicação.
Ao ouvi-lo com atenção, Francys diz não haver compreendido o que significava. Se desculpou e pede mais uma vez que lhe falasse. Ele sorrir e com muita ternura lhe diz: do místico não se espera coisa alguma. Dele exala apenas o vazio. Seu olhar é abismo e seu semblante nostalgia. É um pobre andarilho. Falta-lhe até mesmo a palavra. Não há o que aplaudir ou prestar-lhe homenagem, pois seu ser beira a inexistência. Dou-te um exemplo: olhe para a planta. Ela olhou atentamente. E ele continuou: A planta tem vida quando fincada a terra. Enquanto suas raízes percorrem os abismos e a escuridão do solo, todo resto se dirige à luz. As folhas se estendem ao céu e suplica-lhe luz e chuva. Quão distante do sol – a copa da planta existe. Assim é o Místico.
Mesmo sem entender racionalmente, aquelas palavras desvelavam dentro do seu coração seu próprio mistério. Francys sabia que Deus já a visitava e lhe oferecia sua presença redentora. Foi ela, em muitos momentos, tocada pelo divino amor. E naquelas palavras, Deus mais uma vez a visitava.
João percebeeu que Francys estava absorta em oração naquele, momento, e se afastou. Deixou ela e o divino. Mas antes, abriu a bíblia que mantinha ao seu lado e deixou um pequeno papel dobrado, com alguns manuscritos.
E assim seguiu todo dia. À noite, um pouco cansada e já em sua cama, Francys retira o papel de dentro de bíblia e lê: o místico, enquanto caminha, seu próprio chão se abisma. Seus pequenos passos alargam-se em mistério. Ele não caminha, é o mistério que lhe atravessa. Ele caminha lentamente, pois já encontrou o que não encontrou e conhece o que desconhece. O Místico é uma seta apontada para o vazio, uma flecha presa ao arco e cravada no exato ponto invisível.
O místico é alguém que em Deus procura Deus. É um lançado no abismo da fé e que se alegra na distância do divino e sente saudade quando perto. Um sinal de contradição para si mesmo, na clara evidência do divino. Em seu coração a intensa luz de Deus obscurece. O místico não interpreta Deus, contempla-o. Não o ver quando mira os olhos em sua face. Nele, tudo é distância e unidade. O paradoxo do místico diz da sua própria experiência de Deus. Ele é, por natureza, um sinal de contradição. Sua palavra e silêncio "é paradoxal", uma in-explicação do divino.
O místico é a harpa do Espírito. Do seu centro surge uma melodia que não vem dele mesmo, pois nele vibra o Eterno. Do místico não se espera coisa alguma, pois ele não tem coisa alguma a oferecer, Deus não é coisa- Nele se irradia o totalmente Outro.
Tudo é mistério! Um vendaval se forma em quietude. Um turbilhão que arde e reinflama. Deus no humano, o humano em Deus, um desejo que grita e cala, uma palavra que diz e some. Uma ânsia e uma busca ininterrupta. Assim é o místico! Tendo encontrado Deus, não o encontrou. Tendo Deus nele habitado, o torna vazio. Beija a divina face sempre em despedida, acaricia sua face em espelho, contempla-O sem visão enquanto fé. É o mais comum dos humanos, trivial, cotidiano e orvalha o infinito. Não sabe dizer senão descodificando e sua lógica é um susto, um soluço.
Francys mais uma vez sorrir, enxuga o canto dos olhos, pois entendeu, para além dos conceitos, mas na experiência do que se tratava todo aquele ensinamento. Dobrou mais uma vez o papel, abriu as escrituras beijando-a, depositou ali os ensinamentos do mestre João e se deitou.

Comentários