Contos


OS POETAS ESTICAM O MUNDO


“Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. Isso dizia o poeta Manoel de Barros. Poetas não são seres confiáveis. Poetas não existem para serem levados a sério. Daí o desinteresse que muitos têm por livros de poesia. Livros de poesia não servem para nada, compra-los é um desperdício.
Útil mesmo é um livrinho de receita, panfleto de manifesto, jornais, revistas de celebridades e de moda. Livros de poesia, não! Esses servem apenas para os lunáticos. Para os que esticam o mundo. Manoel de Barros esticava o mundo, chegou até a fotografar a existência da lesma. Antes, já havia fotografado o perfume e o sobre.

Conheci outro lunático. O nome dele era Quintana. Certo dia acordou pensando numa pedra de Calcutá. E olha que nunca tinha ido lá. Só um ser enfermo para pensar numa pedra, numa rua de Calcutá. Pensar em pedra exige um alto nível de humanidade. Pior ainda é quando se encontra uma pedra no meio do caminho.
Há uma risonha constatação: poetas são preguiçosos. Vivem sempre atravessados por uma vertigem de lesma. Mas não podemos usar isso para atacá-los. Afinal, o próprio Quintana elevou a preguiça poética aos píncaros das grandes invenções, pois dizia que “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”.
Podemos afirmar que o lunático e o preguiçoso não é feliz nem infeliz é poeta. Não sei bem se isso é verdade. Clarice Lispectro, por exemplo, diz não ser triste. Estava triste apenas numa das suas entrevistas. De fato, tinha uma tristeza no semblante. Mas acredito que era fingimento, afinal “o poeta é um grande fingidor, finge tão completamente que chega a finge que é dor, a dor que deveras sente”. 
Poetas são seres doídos, são atravessados pelo mar, por luzes, por estrelas e noites. Coisas pousam nos olhos dos poetas. 

Álvaro de Campos se perguntou como seria se ao menos “ se casasse com a filha da lavadeira, talvez fosse feliz”. Mas, não! O tudo e nada lhe atravessavam. Poeta são doutores do coisa nenhuma. Assim, que comprará seus livros? Quem lerá seus versos? Aqueles que pretendem ser lunáticos, preguiçosos e doídos. Aqueles que querem esticar o mundo.







O EXERCÍCIO DA INUTILEZA



É preciso desocupar-se das coisas para compreender melhor o mundo. Em outras palavras, é preciso exercitar a inutileza para ficar disponível ao Ser. Assim são os poetas (sábios). Tenho grande reverência aos sábios (vivos e mortos). Quando os encontro imediatamente me aproximo. Mas eles não se encontram em qualquer esquina. Em qualquer esquina se encontram os tolos. Esses são fáceis de serem vistos, pois são barulhentos. Fazem discípulos aos montes, pois são mestres em tolices  coletivas.

Encontrei, ultimamente, Rumi e Gibran. Eles são dignos da minha demora. Leio sem pressa seus escritos. São sábios. Quase um descuido do divino. Deus, às vezes se descuida e derrama mais de Si em alguns humanos. Talvez seja para lembrar a humanidade algo que ela teima em esquecer.
Quem leva a sério o poeta? Ou ao menos quem leva a riso? Às vezes rio diante de um poema que me fala ao coração. Amo os poetas e anseio por ouvi-los. Só eles têm algo a dizer ao mundo. Mas não sabem muito bem o que é. Por isso são verdadeiros, pois não sabem... e continuam dizendo... porque é mistério.

 Quem sabe todas as coisas são os políticos, os cientistas... Esses explicam tudo. Para esses, não dou ouvidos. Por isso estou amando minhas leituras de Rumi e Gibran, eles não explicam. Sugerem algo que não tem nome. Só o que não tem nome me atrai. Ai exercito minha inutileza.




A MONUMENTAÇÃO DO VAZIO




“Chaplin monumentou o vagabundo.”

Manoel de Barros, as coisas miúdas e inúteis. 

Eu pretendo monumentar o vazio. 

Recentemente descobri uma passagem secreta: o oco do mundo. O oco do mundo dá acesso ao vazio. Poucas pessoas sabem dessa passagem. Ao passar pelo oco do mundo se chega ao pensamento. A mente não está no cérebro. Alguém já viu algum neurocirurgião encontrar a mente? Ela está mesmo é no vazio. Aliás, lá também reside o amor, a paixão, a saudade... É de vazio que é feito tudo isso. 

Se encontrares, um dia, o oco do mundo, entre.







O POETA



O universo é pouco para o seu coração prestes a explodir. Não se contém dentro de si. Ora um turbilhão, um vulcão prestes a derramar suas larvas por entre os vales; ora, um riacho que corre calmo ao mar.  Quase sempre um encarcerado que chora sua inocência. Um culpado resoluto. Sim, um culpado! Sem absolvição vagueia sem defesa. Culpado em pisar o pó que se ergue e perturba seus olhos. Mas quem manda os olhos existirem? Deveria prevalecer a existência do pó e nada mais. O pó é o carrasco que lhe importuna.

Ele ao menos golpeia a floresta no raio do sol matinal. Delicia-se na luz do sol e se compunge, pois, a nuvem densa faz chorar o firmamento. Desliza-se na luminosidade que atravessa os galhos, mas logo é expulso. Lançado nos verdes campos, banha-se nas águas cristalinas das cachoeiras, mas ali os animais perseguem. Devoram sua pele, sua carne e expõe seus restos no casulo.

De temor é feito o corpo. A alma desposou a covardia e embriagou-se. Não de vinho. De medo, apenas. A face humana lhe apavora e põe-se em fuga aos picos gelados do Tibet.   Humanos são cães ferozes que abraçam, em carícias, para devora -lhe.  Mas essa condição o persegue nele mesmo. Como os demais, transita o mundo vil de si mesmo. 

Ele está na selva. Não, a selva é recanto de paz. Na selva não há razão.  É na arena que se encontra.  Um espetáculo foi armado pelos algozes; ele comediante, um bobo da corte. Seu bom humor é cortado ao fio da lâmina. Ele mesmo é cortado ao fio da lâmina. O que acalma é essa chuva que cai e lhe arrasta. Essa correnteza que o conduz para longe dos olhos famintos dos corvos em corpos de gentes.

Tem medo de ficar só! Definitivamente, a solidão o apavora. Mas, é ela que ama. Ama vencido pelo pavor.  Nunca está só. A solidão é alguma coisa que o acompanha, um ente que persegue seus passos, que o observa, que aponta o dedo para face e diz: estou aqui! Condenado encontra-se, na não solidão. Preso a ela.  E quando todos perguntam por que está só, a solidão graceja do seu prisioneiro.

Queria mesmo era ser livre, a ponto de ser livre da liberdade. Liberdade é prisão. Queria ser pendurado numa gota de lágrima de uma criança faminta.  A gota secou, antes da fome, antes da criança, antes do mundo.  Ele estava na gota, mas evaporou. Foi para as alturas. Onde os olhos não penetraram e alheio ficou na invisível forma do universo. 

Ah! Agora sim, permanece em paz.  O que trouxe essa a paz? Espinho! Só o espinho desperta a alma sonâmbula. Só o espinho retira o espinho.  Caminharás assim, com espinhos nos pés.  Onde estão os pés e as sandálias? Não há. Isso é nada! Em que abismo lançou-se a estrada? O chão abdicou-se de si.  O lugar onde estava foi sugado. Sentiu-se flutuante, como quem orbita as constelações. O corpo leve. Agora sim, calharás no divã de nuvens, acima das nuvens, fora da órbita, onde ostros colidem com o absoluto nada.  Não é possível, mil cometas vêm em sua direção. Regressa a condição abjeta.  O cosmo é perturbador. Volta ao pó de onde estivera, o cárcere que lhe mantinha culpado.

Não. Definitivamente, não. Descobrirás o vale secreto, onde as palavras nascem e se recolhem. Onde os seres alados dormem e a vida refugia-se da sua própria tristeza. Descobrirás a própria essência para que a vida seja possível, posto que dramática. Disfarce-te aos olhos de todos, no poema. 







O POETA EMBRIAGADO



Um homem, desde a infância, bebia música e poesia. Todos os dias, logo cedo, embriagava-se e assim passava o seu tempo. Era comum vê-lo caído debaixo das árvores, nos campos e estradas.

Quando voltava para cidade, ao fim do dia, os moradores estranhavam sua fisionomia. Alguns homens tentavam resgatá-lo, mas não havia clínica de recuperação para poeta. Resolveram abandoná-lo à sua própria sorte. 

Um século depois, aquela cidade, embriagada e agradecida, ler seus poemas. 







O POETA E O MANICÔMIO



O poeta foi incumbido em falar para os loucos, no manicômio, sobre a essência da vida. Tema difícil de ser tratado. Ainda mais para um público tão exigente. Teria que fazer uso, além da linguagem poética, dos seus conhecimentos filosóficos. Enquanto discorria para uma assembleia de trinta loucos, suas palavras foram se encaixando uma a uma na des-razão. Começou por mostrar a diferença entre as substâncias e os acidentes. Em seguida,  ponderou sobre a fragilidade e potência onde a vida se manifesta. Tratou sobre a linguagem, sobretudo, a artística. Para finalizar sua esplendida palestra, declamou belos poemas.  Enquanto assim fazia, um louco levantou e lavou a mão na réstia  da luz do sol que atravessa a fissura no telhado; o outro,  montou numa formiga;  uma louca que até então estava quieta, prendeu a mão na teia de  aranha; o outro correu do vento que soprava pela janela, pois queria devorá-lo; uma levantou a mão e perguntou que cor tem o futuro. O que estava sentado ao lado da janela, atirou do lado de fora, o pensamento e de repente todos começaram a dançar, todos o seguiram, inclusive o poeta. O poeta rodopiou de mãos dadas com os loucos. Viu-se que todos, naquele manicômio, eram alcançados pela poesia. Daquele dia em diante não era mais manicômio, mas Recanto Poético.





SOBRE A CEGUEIRA E O ENXERGAR



Um amigo caminhava pelas ruas em Paris, quando avistou uma movimentação à porta de um belo recinto que lhe chamou a atenção. Era uma exposição de arte abstrata. Por curiosidade resolveu adentar. Os quadros rabiscados nas paredes não lhes pareciam grandes coisas. Mas algo lhe chamou a atenção: um homem bem vestido e de óculos escuros estava ali, fixado num quadro que se localizava em meia altura. Não ousava um movimento sequer. Era como se todo seu ser estivesse preso à tela. 

Pensou, então: devem ser um desses loucos que admiram rabiscos. 

Depois de um longo tempo percebeu que aquele homem era cego. Dirigiu-se até ele e perguntou por que estava ali, naquela exposição, se era incapaz de enxergar as coisas. Descobriu que era dele aquela exposição. Era um artista de renome e que perdera sua visão ainda na primeira infância. O artista sorrir e diz: enxerga-se primeiro, para depois ter olhos